Revista Mátria 2023
Elas estão entre as mais atingidas pela crise climática, mas só recentemente começam a participar dos debates para conter esses impactos
A degradação ambiental está desencadeando diversos fenômenos econômicos e sociopolíticos que vulnerabilizam pessoas do sexo feminino. O alerta foi feito por Reem Alsalem, relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre violência contra mulheres e meninas.
Num documento publicado em outubro de 2022, Alsalem destaca as vulnerabilidades sobrepostas experimentadas por grupos de mulheres com maior risco de sofrer com os impactos da emergência climática; como mulheres pobres e/ou em contextos “racializados”, indígenas e mulheres com deficiência. O relatório também aponta a necessidade de abordar a violência contra mulheres e meninas como parte da emergência climática.
“As mulheres são as mais impactadas, porque são elas que estão – na sua grande maioria, as mulheres negras – vivendo nas áreas mais pobres. Estão em contato com a degradação ambiental, com a carência de recursos, água, saneamento; questões que passam pela justiça ambiental”, explica Iara Pietricovsky, antropóloga e consultora do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).
Na opinião da antropóloga, não é por acaso que existe uma abordagem específica, que é o racismo ambiental. “O impacto maior da questão ambiental vai se dar naquelas populações que são historicamente impactadas pela desigualdade de gênero e raça no Brasil, um universo que pode se replicar em países da América Latina e África”, acrescenta.
Participação das mulheres na COP 27
A presidente da Talanoa, organização dedicada à política climática, Natalie Unterstell, participou da 27ª Conferência do Clima (COP 27), realizada em novembro de 2002, em Sharm El-Sheik, Egito. Ela avalia que há aumento de grupos e de redes de mulheres atuantes. “Nas últimas COP, a gente anda pelos corredores e vê cartazes e pôsteres com informações sobre a participação das mulheres nas conferências, e os impactos da mudança do clima sobre as mulheres. E isso é superimportante, porque o ambiente de negociação ainda tem muitos representantes de governo, ainda é muito masculino”.
Natalie explica que, na medida em que esses grupos de mulheres começam a se organizar, a presença feminina vai se materializando com uma ascenção mais intensa de lideranças, inclusive de meninas. “Essa atuação é coletiva, se dá em redes, com algumas lideranças importantes como a Mary Robinson, ex-presidente da Irlanda, que
fala sobre gênero nas COP, nos últimos anos, e a organização WEDO (Women’s Environment and Development Organization) que vem promovendo ações nessa área há,
pelo menos, duas décadas”.
Novos ares na Conferência
A delegação do Brasil na COP 27 contou com lideranças do então governo de transição, como as ministras Marina Silva (Meio Ambiente) e Sônia Guajajara (Povos Originários). “A gente chegou lá com pessoas da equipe de transição pautando as discussões que o Brasil virá a fazer”, conta Natalie. “Mas também contou com muitas mulheres, que são lideranças da sociedade civil, no setor privado. Gente de todas as idades, desde a jovem liderança indígena Txai Suruí, à Marina Grossi, do CEBDS (Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável). Muitas que carregam essa bandeira de incluir mais mulheres, não é só ter uma de referência,
nós precisamos ser muitas, mesmo”, completa a presidente da Talanoa.
Para a consultora do Iara Pietricovsky, que também marcou presença na COP 27, a participação das mulheres no debate de soluções para a crise climática ainda é pequena. “O debate existe, é claro. Mas o movimento feminista ainda está numa agenda mais de defesa contra a violência contra a mulher. E essa relação com a questão climática não está na prioridade”, analisa. Ela lembra que o presidente Lula e a ministra Marina Silva anunciaram, nos grupos de transição, que aquestão ambiental é transversal, que
precisa atravessar todas as políticas, o que inclui as mulheres, e esse fator é positivo.
“Eu vejo uma demanda comum a todos os segmentos de mulheres, que é o fato de que nós chegamos a essa crise climática nos dias atuais por uma profunda crise de liderança, e das autoridades que vem sendo ocupadas por vozes de homens brancos em geral”, assevera Natalie. “A prioridade de incluir as mulheres no debate, como protagonistas, não é meramente formal e representativa. Essas questões de gênero, muitas vezes, ainda são tratadas, principalmente no Brasil, como ‘questões identitárias’ quando, na verdade, há uma profunda ligação com os jogos de poder, com o equilíbrio de poder político”, sintetiza.
Desafios
“O Brasil precisa fazer uma lição de casa não realizada, que é a adaptação. Esse investimento é importante e não vem acontecendo, nem nas cidades nem no campo. A gente só vai conseguir reduzir impactos se conseguir reduzir as emissões [de gases do efeito estufa] e, por outro lado, se a gente conseguir preparar essas mulheres e meninas para que elas possam se adaptar a esse mundo mais quente, esse clima mais instável, a alcançarem maior segurança em todas as dimensões tanto social, econômica como física”.
Para Iara Pietricovsky é necessário investir em políticas públicas transversais para reduzir o aquecimento global e incluir as mulheres: “Se você vai proteger a floresta
amazônica, por exemplo, ou mudar a matriz energética, precisa fazer programas que sejam coerentes, de forma a beneficiar a produção daquelas comunidades indígenas,
tradicionais, com políticas de incentivo de coleta e comercialização de forma sustentável”.
Ela acrescenta que, nas populações tradicionais, as mulheres têm papel fundamental. Por isso, é preciso reconhecer a existência delas e incentivar um processo de formação orientado pela sustentabilidade e preservação ambiental, com garantia de comercialização. “Isso é importante para que elas não fiquem vulneráveis a qualquer relação com empresa que queira obter lucros imediatos em detrimento da preservação daquele meio ambiente”, finaliza.
Transição Justa para a classe trabalhadora brasileira
Oitenta milhões de empregos podem ser perdidos até 2030 devido à mudança do clima, sendo os países pobres os mais atingidos. A estimativa é da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Reconhecendo esse cenário, a transição justa é a principal bandeira do movimento sindical na discussão sobre a crise climática e seu enfrentamento.
O secretário de meio ambiente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Daniel Gaio, explica que, graças à incidência do movimento sindical, o Plano de Implementação de Sharm el-Sheikh, da COP 27, incorporou entre os seus pontos o reconhecimento do diálogo social e garantias de proteção social para alcançar a transição justa, além de destacar a importância de participação efetiva das partes impactadas, dentre elas a força de trabalho.
Entre as medidas previstas estão a antecipação de aposentadoria para aqueles que perderem postos de trabalho; contratação de emprego qualificado e qualificação de mão de obra para a reconversão das indústrias.
Outro avanço da COP 27 para os trabalhadores foi a aprovação de um Fundo para Perdas e Danos. “É importante garantir que o acesso a esse fundo promova possibilidades para os países e setores mais impactados sem provocar um aumento das desigualdades e injustiças”, reforça Gaio. Entre as atividades econômicas que mais emitem gases do
efeito estufa no Brasil está a mudança no uso da terra (retirada de vegetação nativa). O presidente Lula já se comprometeu a reduzir o desmatamento. Segundo Gaio, o cumprimento dessa meta precisa ser acompanhado de políticas para as populações que hoje estão vivendo dessa atividade: “Essa redução no desmatamento pode impactar em pessoas que hoje vivem dessa renda, inclusive ilegais: tem muita gente refém do crime organizado, que opera ilegalmente em várias atividades. Precisamos dar uma saída política e econômica para essa população”.
Para Daniel Gaio, também é preciso que o governo invista na construção de políticas de nacionalização de produção e geração de empregos de qualidade na indústria nacional. “Há pesquisas mostrando que quanto mais verdes são os empregos no Brasil, piores são. Nesses setores de energia eólica, solar e etanol (biocombustíveis) há baixa remuneração, terceirização e quarteirização, convênios coletivos fragmentados e baixa representatividade sindical, situação muito diferente do setor do óleo e hidrelétricas. Precisamos garantir que esses empregos verdes sejam de qualidade”, conclui o dirigente.
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Fuente: CNTE